DOI:http://dx.doi.org/10.22201/fq.18708404e.2020.5.77117
Alvaro Chrispino,[a] Thiago Brañas de Melo[a] y Márcia Bengio de Albuquerque[a]
Resumo |
Durante pandemia causada pelo COVID-19 percebeu-se o aumento das manifestações de posições anticiência e negacionistas, da desinformação e das fake news. Crenças pessoais das mais variadas foram valorizadas em detrimento a posições baseadas em evidências. O quadro suscita reflexão dos educadores em ciência e tecnologia e requer propostas de intervenção na realidade escolar a fim de permitir uma formação cidadã mais bem informada. A abordagem de Natureza da Ciência e da Tecnologia (NdCT) e as experiências com a aplicação de questões sociocientíficas (QSC) podem contribuir para a melhoria dos quadros percebidos. |
Palavras chave: |
Pandemia; reflexão; experiências; COVID-19. |
El crecimiento de la anti-ciencia en Pandemic: una imagen de luces y sombras |
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Resumen |
Durante la pandemia de COVID-19, hubo un aumento en las manifestaciones de posiciones anti-ciencia y negacionistas, desinformación y fake news. Las creencias personales más variadas fueron valoradas a expensas de posiciones basadas en evidencias. La situación evoca una reflexión en los educadores en ciencia y tecnología y requiere propuestas de intervención en la realidad escolar para permitir una formación ciudadana mejor informada. El enfoque de la Naturaleza de la Ciencia y la Tecnología (NdCT) y las experiencias con la aplicación de cuestiones sociocientíficas pueden contribuir a la mejora de las condiciones percibidas. |
Palabras clave: |
Pandemia; reflexión; experiencias; COVID-19. |
The growth of anti-science in the Pandemic: A picture of light and shadow |
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Abstract |
During the pandemic of COVID-19, there was an increase in the manifestations of anti-science and denialist positions, misinformation and fake news. The most varied personal beliefs were valued at the expense of evidence-based positions. The situation evokes reflection in educators in science and technology and requires proposals for intervention in the school reality in order to allow a better informed citizen formation. The Nature of Science and Technology (NdCT) approach and the experiences with the application of socio-scientific issues can contribute to the improvement of perceived conditions. |
Keywords: |
Pandemic; reflection; experiences; COVID-19. |
Os fatos
No momento em que escrevemos este texto, o mundo ultrapassa a triste marca de 1 milhão de mortos por COVID-19, sendo que o Brasil contabiliza mais de 144.000 mortes e os números tendem a crescer.
Como consequência direta do quadro de Pandemia, a segurança sanitária exige uma série de protocolos que alcançam todos os setores da sociedade, mesmo que de formas distintas. Em 31 de maio, quase 1 bilhão e 600 milhões estudantes de 193 países estavam com aulas suspensas em escolas e universidades, o que representa 91,3% de todas as matrículas do mundo[1]. Os setores produtivos, não considerados de necessidade essenciais, permaneceram fechados por longo tempo, trazendo impactos na economia e nas relações pessoais e sociais. As projeções de recuperação são pessimistas no que se refere à queda de receita pública, capacidade de investimento e de pagamento das contas públicas. O desemprego recorde atinge parte importante da população economicamente ativa e retira também as possibilidades dos milhões de informais e subempregados de manterem condições mínimas de subsistência. A atividade privada sofre impactos dos mais variados. O abismo histórico da desigualdade entre ricos e pobres se amplia.
As sombras
As evidências científicas, mesmo que produzidas de forma mais acelerada pela excepcionalidade da COVID-19, como tem ocorrido com a produção das diversas vacinas, vão sendo apresentadas e os pesquisadores, ligados por redes de colaboração, aos poucos passam a conhecer o vírus e trazem protocolos que se aprimoram conforme os conhecimentos se acumulam e se aperfeiçoam. As evidências, seus protocolos e seus necessários movimentos de acomodação entre o desconhecido e os saberes construídos são atacados e desprezados em detrimento a práticas “milagrosas”, destituídas de fundamentos fáticos.
A pandemia permitiu que percebêssemos manifestações pessoais e sociais de diversa ordem. Deixando de lado aquelas manifestações que demonstram o egocentrismo ou o exercício do poder financeiro e político de países sobre outros, gostaríamos de enumerar as questões que estão no campo da Ciência e da Tecnologia (C&T) e, por pertinência, no ensino e na educação de C&T.
No rastro destes acontecimentos podemos enumerar temas que marcam a realidade brasileira trazendo consequências nefastas para a sociedade em que se dissemina. A questão ambiental (a mudança climática, negação dos dados de queimadas da Amazônia pelo INPE-Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais etc), o uso de medicamentos sem comprovação de eficácia clínica (cloroquina, hidroxicloroquina etc), o grupo antivacina que já inicia o movimento para não serem obrigados a se submeterem a futura vacina da COVID-19, o terraplanismo que amplia seus seguidores, a desconsideração (e desrespeito) aos marcadores sociais da diferença (raça, geração, local de origem, gênero e sexo), a pregação das intolerâncias, a multiplicação da desinformação e das fake news e o revisionismo infame do Holocausto e da ditadura de 1964, para ficarmos em poucos pontos. Em todos os exemplos, posições pessoais baseadas em crenças ou em cultura ancestral opõem-se a evidências surgidas da observação, da experimentação e da construção de consensos.
Estes movimentos de negacionismo da ciência, que cresceu vertiginosamente neste momento de pandemia, repete comportamentos mais antigos como, por exemplo, do aquecimento global. John Cook et al (2016) informam que há consenso entre 90% a 100% dos cientistas de clima de que os seres humanos causam o aquecimento global recente. Na mesma linha, Cook e Jacobs (2014) e Cook et al (2013), após analisarem 11.944 abstracts, encontraram que 97% concordam que o aquecimento global é um fato e que possui causa humana. Tatiana Roque (2020) disseca e expõe os subterrâneos do negacionismo do e no poder, especialmente no tema ambiental, ora vigente no Brasil. Apresenta uma trajetória de construção deste movimento, as fragilidades da ciência utilizadas pelo negacionistas, desde os Mercadores da Dúvida (Merchants of Doubt), em 2010, e pesquisa de opinião realizada pela Wellcome Global Monitor, em 2018. Relaciona estes movimentos com a desigualdade social e com a crise da democracia. Por fim, conclama a ações de divulgação de C&T junto a sociedade e escreve que “ações coletivas podem ser mais eficazes do que certezas e verdades contra o negacionismo. Por isso, estratégias científicas e políticas precisam andar de mãos dadas” (2020, p. 32).
Os especialistas em ensino de ciência possuem alguma experiência acumulada com questões de mesma ordem, visto que tratamos desde há muito tempo com as questões controversas que envolvem crenças pessoais e ciência, especialmente as questões relacionadas ao criacionismo e ao evolucionismo. Logo, este tipo de problema que tomou maior ênfase em tempos de pandemia está plenamente ao alcance dos objetivos e desafios dos estudos de NdCT, como bem salientam Vázquez et al (2008). Escrevem que o conceito deve englobar
uma variedade de aspectos sobre o que é a ciência, seu funcionamento interno e externo, como constrói e desenvolve o conhecimento que produz, os métodos que usa para validar esse conhecimento, os valores envolvidos nas atividades científicas, a natureza da comunidade científica, os vínculos com a tecnologia, as relações da sociedade com o sistema tecnocientífico e vice-versa, as contribuições desta para a cultura e o progresso da sociedade. [...] A partir de um ponto de vista educacional, o argumento democrático é um elemento substancial a favor da inclusão da NdC[T] numa educação científica que procura a finalidade da alfabetização científica e tecnológica de todas as pessoas, pois segundo os peritos, a participação dos cidadãos nas decisões tecnocientíficas de interesse social requer a compreensão de elementos da NdC[T] (...). Com relação a esse assunto, a pesquisa didática mostra um panorama complexo em que confluem os conhecimentos científicos dos temas colocados em jogo e da NdC[T]: o raciocínio moral (valores e normas); as emoções e os sentimentos; as crenças culturais, sociais, religiosas e políticas; os aspectos que estão implicados de alguma forma nas relações entre a sociedade e a CeT. (grifos nossos)
Se é certo que o tema e as circunstâncias contemporâneas são próprios da NdCT, é certo que devemos formular questões que ajudem a orientar as reflexões, as metodologias e as ações de intervenção no mundo real. Considerando de forma direta o problema causado pela pandemia e pelas decisões (ou falta delas), podemos prosseguir buscando responder a seguinte pergunta: “o conhecimento da NdC[T] é um fator chave para tomar este tipo de decisão?”, que é a mesma pergunta que orienta as reflexões de Acevedo e colaboradores (2005, p. 4) e que ora trazemos para contribuir na condução deste texto. Os autores lembram que
Num trabalho em que se investigou a relação entre as concepções sobre a NdC de estudantes do secundário e da Universidade e as suas reações perante provas científicas que desafiavam as suas crenças relativamente a diversas questões sociocientíficas, Zeidler et al. (2002) mostraram que muitos deles consideraram irrelevante para tomar as suas decisões qualquer conhecimento científico que não apoie as suas crenças prévias; de outro modo, à margem do mérito científico dos dados que lhes proporcionaram, os estudantes tendem a selecionar a informação que está mais de acordo com as suas crenças pessoais sobre o tema colocado. Ainda que muitos deles aceitaram os dados científicos oferecidos, depois preferiram não os usar nos pensamentos que seguiram para tomar as suas decisões sobre as questões sociocientíficas propostas. Mesmo assim, se pôde comprovar que, ao responder a estas questões, alguns estudantes também desprezaram os pontos de vista éticos dos seus colegas que entravam em conflito com os próprios. Outro estudo muito recente de Sadler, Chambers e Zeidler (2004) apoiou a ideia de que, para tomar decisões sociocientíficas, muitos estudantes têm mais confiança na informação que é relevante para as suas crenças pessoais do que na qualidade científica das provas e dos dados proporcionados; ou seja, para eles não há uma relação direta entre a capacidade de persuasão dos dados e o seu valor científico. Grifos nossos
Muitos estudos, tanto no Brasil quanto em outros países, trazem luzes sobre a questão da controvérsia entre crença e ciência. Dorvillé e Selles (2016), apresentam um rico e detalhado trabalho sobre os conflitos, nem sempre no campo acadêmico, entre a ideia do criacionismo e o evolucionismo e como isso se manifesta no campo individual ou como movimento organizado no espaço da escola. Concluem com veemência:
Por fim, diante do que foi exposto, é necessário fazer uma distinção entre a presença de discussões sobre temas religiosos nas aulas de ciências e biologia, como parte das dúvidas e questionamentos trazidos pelos alunos, e a presença do criacionismo como currículo prescrito em livros didáticos e como conteúdo científico nessas aulas. Na verdade, estes últimos utilizam os primeiros como um pretexto para estender a sua estratégia de ação política para o campo escolar. Enquanto os diferentes conflitos de nossos alunos devem ser entendidos como componentes naturais das ideias que eles podem trazer para a sala de aula, devendo ser discutidos à medida que se manifestem durante o curso como parte inerente do processo de aprendizado, acreditamos que o movimento criacionista deve ser combatido como ingerência indevida em campos alheios ao seu contexto de produção original. As dúvidas e posicionamentos dos alunos são parte integrante do processo de realização de mediações com os conteúdos que se deseja transmitir, algo bem diferente do que pretende a agenda política do criacionismo, que deve ser fortemente rejeitada na escola. (p. 463) Grifos nossos
A pandemia radicalizou posições anticiência que estavam pontualmente manifestadas nos espaços escolares e se mantinham reservadas aos espaços sociais restritos. Deixaram de ser posições pessoais para tomar, pelo poder multiplicador das redes sociais, os espaços públicos e escolares, estabelecendo-se como ações curriculares que restringem as ações e os pensamentos livres, pondo em risco uma história de construção coletiva de conhecimento baseado em evidência. Fizemos um looping e, neste aspecto, parece que retornamos à Idade Média, a idade das trevas.
As luzes
Lembramos a conhecida frase, quase um mantra em NdCT, que trata sobre o ensino de ciências: “a solução não consiste em mais ciência e tecnologia, mas sim em um tipo diferente de ciência e tecnologia” (González, López e Luján, 1996, p. 56). Gostaríamos de parafrasear os autores e dizer que a solução não consiste em repetir os processos de ensinar e aprender, mas sim em um novo tipo de procedimento de ensinar e de aprender ciência quando os temas confrontarem com crenças estabelecidas e em comunidades onde este tema é consolidado. As consequências da pandemia nos solicitam esta reflexão.
A NdCT é um campo complexo, interdisciplinar, contextualizado e transversal, fundamentado especialmente nos saberes da sociologia, da filosofia, na história, da economia, da política, da psicologia, dos valores etc. (Chrispino, 2017). Trazemos para este primeiro momento a reflexão de Cutcliffe (2003):
[...] em resumo, pode dizer-se que o campo de CTS [e NdCT] deixou para traz qualquer tendência inicial que pudesse ser relacionado com alguns grupos e que implicasse em uma visão simplista em branco e negro da ciência e da tecnologia na sociedade, buscando alcançar uma compreensão mais complexa da relação de CTS. Na atualidade, CTS concebe a ciência e a tecnologia como projetos complexos que se dão em contextos históricos e culturais específicos. O que tem surgido é um consenso com respeito a que, se bem a ciência e a tecnologia nos trazem diversos benefícios, também provocam certos impactos negativos, alguns dos quais imprevisíveis, mas todos refletem os valores, pontos de vistas e visões daqueles que estão em situação de tomar decisão com respeito aos conhecimentos científicos e tecnológicos dentro de seus âmbitos. A missão central do campo CTS até a data de hoje tem sido a de expressar a interpretação da ciência e da tecnologia como um processo social. Deste ponto de vista, a ciência e a tecnologia são vistas como projetos complexos em que os valores culturais, políticos e econômicos nos ajudam a configurar os processos tecnocientíficos, os quais, por sua vez, afetam os valores mesmos e a sociedade que os mantém. (p. 18) grifos nossos
O desafio que nos apresenta é debater ciência sob a ótica da NdCT, diminuindo os espaços para o surgimento do fenômeno da anticiência ou do negacionismo. Zeidler et al. (2005) argumentam que a convivência entre as crenças e culturas - vindas dos contextos sociais dos estudantes e dos professores -, e a ciência deve ser construída no espaço do Ensino de Ciências. Nesse sentido
As diferenças culturais podem implicar discordâncias éticas e, em nossa sociedade pluralista, são coisas que nossos alunos precisam aprender e praticar a negociação, dentro e fora das situações e ambientes familiares. QSC [Questões Sociocientíficas] fornecem contextos envolventes e complexos para esse trabalho. Talvez um objetivo ainda mais elevado para a educação em QSC seja a mobilização de estudantes que agirão com base em seus recém-adquiridos conhecimentos da ciência e suas ramificações. (p. 372)
Ao abordar o desenvolvimento moral, ético, emocional e epistemológico do aluno, a abordagem das QSC fornece um nexo que une as várias forças que contribuem para o desenvolvimento do conhecimento científico. (p. 371)
Para Hess (2009), o uso das controvérsias nas atividades escolares possibilita um sentido maior do conhecimento científico em contextos geográficos, sociais, econômicos e políticos. Para a autora, ao abordar não apenas os conteúdos específicos do currículo tradicional, os atores sociais participam de discussões sob diversos pontos de vistas, exercitando a qualidade da tolerância, indispensável a vivência do processo democrático.
Para Chowdhury (2016), as QSC ajudam a compreender a natureza distinta da ciência e os aspectos pessoais da aprendizagem das ciências, além de focar nos aspectos de humanização e socialização das práticas científicas e enfatizar sobre a compreensão do papel e das interações da C&T na interface entre sociedade, política, economia, religião e ética, bem como o desenvolvimento do caráter dos alunos e no processo de tomada de decisão informada dos alunos.
Como se fosse conclusão
A pandemia permitiu, por questões que fogem a este espaço, o surgimento e/ou o fortalecimento de movimentos definitivamente anticiência e negacionistas, como o terraplanismo, o movimento antivacina, a negação do aquecimento climático como ação humana, dentre outros. Isto indica que a lista de temas sensíveis nas aulas de ciência – considerando as crenças prévias de alunos e seus responsáveis, até então formada pelo criacionismo, o evolucionismo, a cosmologia – aumentou consideravelmente e ainda possui um aliado potente que são as redes sociais.
Aqueles que que se filiam a estes movimentos são adultos e crianças/jovens. Para estes últimos precisamos buscar metodologias que permitam intervenções efetivas a fim de esclarecê-los para que melhor possam decidir como indivíduos e como membros da coletividade a que pertencem. Para isso, a experiência demonstra que o uso de QSC e espaços de diálogo contribuem de forma adequada.
Para os adultos, que passaram pelos bancos escolares sem a possibilidade de ampliar sua visão e consolidar sua formação científica, precisamos de programas robustos de divulgação da C&T e/ou atividade de extensão universitária que ofereçam oportunidade de reconceitualização dos fenômenos e dos métodos da C&T a fim de que possam decidir a partir da visão ampliada e melhor informada dos fenômenos científicos e tecnológicos.
A pandemia nos permite perceber as novas faces de questões antigas que não foram enfrentadas de forma adequada anteriormente e, por isso, ressurgem fortalecidas e com nuances mais agressivas.
É necessária uma gestão do conhecimento e a divulgação científica e tecnológica a fim de superarmos uma questão está posta, que é real e que põe em risco o que se construiu até aqui de práticas científicas em contextos democráticos. O desafio extra é fazer tudo isso respeitando as diferenças.
Referências
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Cutcliffe, S. H. (2003). Ideas, Máquinas y valores. Los Estudios de Ciencia, Tecnología y Sociedad. Anthropos, UNAM.
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Recepción: 2020-10-01. Aceptación: 2020-11-16
[a] Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow de Fonseca.
[1] Estimativas diárias promovidas pela UNESCO se encontram disponíveis em: https://pt.unesco.org/covid19/educationresponse.